domingo, 2 de fevereiro de 2014

Uma série de crimes no coração de Brasília


Por Lilian Tahan e Clara Becker

Dos bolsões de pobreza à região central, a insegurança domina a cidade. E o ano de 2014 começa com uma média de setenta crimes por dia apenas no Plano Piloto.
Maria Inês fala com exclusividade sobre a morte do marido: o assassinato ocorreu na véspera do casamento de uma filha do casal (Foto: Roberto Castro).

Naquela sexta-feira (3), João Carlos Franco de Souza deu o braço à filha Patrícia e a levou até o altar da Catedral. Em meio a sorrisos e cercado de pessoas queridas, o brigadeiro da reserva repetiu o percurso várias vezes. Piloto de caça, ele acostumou-se à velocidade, mas nesse dia não teve pressa. Era o ensaio do casamento de sua primogênita, marcado para sábado (4). De noite, ao voltar para casa, quando entrava na garagem do prédio onde morava, no bloco J da 112 Sul, Souza foi abordado por três bandidos que o seguiram de carro. Sem perceber a presença dos assaltantes, o militar abriu a garagem e os criminosos o cercaram. O brigadeiro se assustou, pisou no acelerador e perdeu o controle do veículo. Nesse momento, um dos assaltantes atirou no pescoço de Souza. As irmãs, os cunhados, as sobrinhas e a mãe do piloto aposentado, que vieram a Brasília para assistir a um casamento, participaram do funeral do militar no mesmo dia em que estavam marcadas as bodas da filha dele. ...

No contrafluxo de uma operação tartaruga da Polícia Militar, a violência avança sem freios em áreas nobres do Distrito Federal, antes consideradas seguras. De luto, a viúva do brigadeiro, Maria Inês, falou a VEJA BRASÍLIA. Deu um depoimento emocionado e lúcido sobre a dor da perda, o sentimento de impotência, a descrença nas autoridades e o medo (veja o relato abaixo). São feridas abertas na família Franco de Souza, mas que, somadas aos crescentes episódios de violência, espalham uma sensação generalizada de insegurança pela cidade.

“Não fui aquela moça que sonhava com um marido. Mas, quando conheci o João, em Fortaleza, namoramos só seis meses e já nos casamos. Ele era especial, delicado, gentil, atencioso com as pessoas. Completamos quarenta anos juntos em 2013. Justamente pelo temperamento dele, não acredito que ele tenha reagido ao assalto. João era piloto, treinado para lidar com situações extremas. Às vezes, paro e penso no que pode ter ocorrido. Por qual motivo atiraram nele. Talvez pela frustração de não terem conseguido levar o carro. Depois do que ocorreu, podaram as árvores, colocaram iluminação extra. Mas naquela noite estava escuro. Por volta das 22h30, o porteiro interfonou. Uma sobrinha que veio para o casamento de nossa filha Patrícia atendeu. Ele disse que havia ocorrido um problema com o carro do João. Eu desci. Vi o veículo atingido. João estava coberto de sangue. Um brigadista prestava socorro e meu marido ainda respirava. Tinha batimentos. Fomos para o Hospital de Base. Por coincidência, um cirurgião amigo da família foi quem nos atendeu. Ele me disse que faria de tudo, mas que o trajeto da bala era fatal. João não voltaria mais para casa. Hoje, não quero vingança. Fui orientada a contratar um advogado para eu ter certeza de que os assassinos vão pagar. Mas não vou perder o resto da minha vida perseguindo a justiça dos homens. Desta, sou descrente. Assim como não acredito em nossas autoridades. O que nos aconteceu não é só uma questão de segurança. É um problema fermentado em uma sociedade sem políticas consistentes capazes de  formar cidadãos completos, bem preparados, bem educados. Nossos governos agem tapando hemorragias com band-aid, sem pensar a longo prazo. Apesar dessa tragédia, a vida continua. Remarcamos o casamento de Patrícia para março. Tenho de dar em casa um exemplo de força e de esperança. Mas não escondo: é muito doído. Ele é muito querido. Nossa netinha de 3 anos era muito ligada ao João. Outro dia, ela encontrou os chinelos do avô no quarto. Perguntou se eu sentia saudade. Eu disse ‘muito’.  Ela disse que também sentia muita saudade. E falou: ‘vovó, você se esqueceu de mandar o chinelo do vovô para o céu’.”

Maria Inês, contadora aposentada, é viúva do brigadeiro João Carlos Franco de Souza, morto em 3 de janeiro, na 112 Sul, vítima de uma quadrilha de roubo de carros

No topo da pirâmide dos crimes que assaltam a paz dos candangos, os homicídios aumentaram, se comparados os dados de janeiro deste ano com o mesmo período de 2013. Desde o início de 2014 até a última quinta-feira (30), 66 pessoas foram assassinadas, dezessete a mais que no mesmo período doze meses atrás. De 2012 a 2013, os crimes para cada 100 000 habitantes diminuíram de 29,4 para 25,6. Também houve queda de 40,9% no índice de latrocínios. Em contrapartida, a cidade ficou exposta a uma série de outras ocorrências que engrossam as estatísticas, apavoram os moradores e expõem a falta de controle das autoridades. Em apenas vinte dias do ano, 1 447 crimes foram cometidos somente nas asas Sul e Norte e na região central, a menos de cinco minutos dos palácios onde despacham a presidente da República e o governador do DF. São ocorrências como furto a veículos, assaltos, sequestros-relâmpago e roubo a residências (confira os principais números no quadro abaixo). 

O mapa do crime no DF. Entre 2012 e 2013 o número de homicídios diminuiu, mas os atos ilegais contra o patrimônio aumentaram muito

Menos mortes **

A incidência dos chamados crimes contra a vida diminuiu no último ano em relação a 2012. Em janeiro,no entanto, ocorreram, em média, dois assassinatos por dia, índice que assombra os moradores 

Mais prejuízo ***

Estatísticas do segundo semestre de 2013 indicam que os crimes contra o patrimônio atingiram patamares assustadores, com crescimento de mais de 1 200% em casos como roubos e furtos


* Número de crimes para cada 100 000 habitantes 

** Dados referentes aos doze meses 

*** Dados referentes ao mês de setembro

Fonte: Secretaria de Segurança do Distrito Federal

Espalhada pelos bolsões de pobreza do DF e cada vez mais inserida no Plano Piloto, a criminalidade atingiu patamares vergonhosos nos últimos meses. VEJA BRASÍLIA teve acesso a dados que revelam, em um passado recente, aumento superior a 1 200% nos registros de crimes contra o patrimônio dos cidadãos. Em setembro do ano passado foram registrados 1 664 roubos a pedestres, 749% a mais que no mesmo período do ano anterior. No caso de furtos em veículos, a incidência cresceu nada menos que 1 276%. Tão impressionante quanto os ataques a residências, com acréscimo de 1 050%. Os porcentuais são assustadores e foram pinçados pelos próprios gestores da Secretaria de Segurança para ser apresentados ao governador Agnelo Queiroz (PT) na quinta-feira (23), durante a primeira grande reunião do ano sobre o tema. 
Cresce o número de moradores de rua em frente à Igrejinha, na 107 Sul: usuários de drogas estão envolvidos em 80% dos delitos (Foto: Michael Melo)

Na tentativa de explicar uma difícil equação para os moradores do DF, o secretário de Segurança, Sandro Avelar, diz que esses números podem ter sofrido algum tipo de distorção. Ele lembra que a greve da Polícia Civil no fim de 2012 comprometeu a atuação de um dos braços de segurança da cidade. Quando delegados e agentes suspendem as investigações, abrem brechas para o aumento da criminalidade. De braços cruzados, deixam, também, de registrar ocorrências, o que pode refletir em diminuição dos indicativos. Mas há outras variáveis que explicam o cenário de faroeste caboclo no DF. A operação tartaruga da Polícia Militar, iniciada em outubro, é uma delas. Tratada até então com reserva pelas autoridades, a medida foi escancarada em outdoors nos últimos dias. Em propagandas superlativas, os próprios integrantes da corporação anunciam a medida de fazer corpo mole como estratégia para pressionar por isonomia salarial com os policiais civis, que começam a carreira ganhando 7 900 reais e chegam, no caso dos delegados, à remuneração de até 22 000 reais. Na Polícia Militar, um cabo recebe 4 100 reais e um coronel, 15 000 reais. Durante alguns anos, a PM do DF foi a mais bem paga do país. Hoje, sete estados, entre os quais São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, são mais generosos com seus militares. “Entendo a luta deles, mas não enxergo um parâmetro entre a complexidade da função desempenhada por um policial civil e a natureza das tarefas do policial militar, embora ambas as forças sejam de grande importância para garantir a segurança pública”, opina André Rizzo, vice-presidente do Sindicato dos Policiais Civis do DF (Sinpol). Ele expõe abertamente uma divergência evitada em público, mas que existe na prática e se tornou um dos entraves na integração de esforços para o enfrentamento da criminalidade.

Perigo nas quadras 

Saiba quais são as quadras com maior concentração de ocorrências

Fonte: Secretaria de Segurança do Distrito Federal

Como capital federal, espera-se que Brasília dê exemplos de políticas eficientes para diminuir seus índices de violência. Mas as vítimas da insegurança no DF se multiplicam entre cidadãos comuns e autoridades. Em 16 de janeiro, a residência do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e de sua mulher, Guiomar Feitosa, foi furtada por quatro adolescentes. Eles tiveram acesso à casa nadando no Lago Paranoá. Levaram coletes salva-vidas, mas acabaram flagrados por seguranças da casa e presos pela polícia. “Brasília deveria ser um refúgio de paz. Mas nos sentimos cada vez mais expostos”, desabafou o ministro (veja o depoimento abaixo).

Quatro dias depois, em 20 de janeiro, um bandido e sua namorada anunciaram um assalto dentro da loja de um posto de gasolina na 307 Sul. Essa quadra faz parte da Unidade de Vizinhança (UV), uma das áreas mais nobres da capital, visitada diariamente por turistas do mundo inteiro. Na comercial da 107 e da 108 Sul, que também integra a UV, os lojistas relataram sete crimes da mesma natureza em 2013. Projetada por Lucio Costa como modelo de infraestrutura básica e de socialização a ser replicado no Plano Piloto de Brasília, a região foi tombada em 2009 pelo seu valor arquitetônico e paisagístico. Mas, infelizmente, o conjunto urbanístico tornou-se outro símbolo latente da violência (veja os detalhes no fim da matéria).

Fonte: Secretaria de Segurança do Distrito Federal

Janeiro do medo 




Nos primeiros vinte dias do ano, foram registradas 1 447 ocorrências somente nas duas asas e na área central da cidade 


O triste episódio na 307 Sul fez lembrar a primeira cena do filme Pulp Fiction, em que um casal se beija e depois anuncia aos berros um roubo dentro de um restaurante. Quem assistiu à investida no meio da Asa Sul também não vai esquecer o episódio. Armados, os dois criminosos, que continuam foragidos, renderam funcionários, ameaçaram clientes, dispararam quatro vezes e acertaram Thiago Rayecker Rodrigues no abdômen. Ele tentou reagir ao assalto e quase morreu (veja detalhes no quadro abaixo). Na ficção, o longa é dirigido por Quentin Tarantino, reconhecido por carregar nas tintas. Nos últimos meses, Brasília virou o cenário de um roteiro de violência digno das passagens mais exageradas do cineasta americano. 


Largados à própria sorte 

Relatos de descaso do poder público nas quadras que nasceram como modelo para a capital 

Fomos às ruas ouvir representantes de escolas, da Igreja, do clube e de estabelecimentos comerciais no coração da Asa Sul. Todos se dizem afetados pela mendicância agressiva dos moradores de rua, pela presença de usuários de drogas e dos traficantes e pela audácia crescente da bandidagem. 

308 SUL

Igrejinha
(Foto: Michael Melo)

Nem o terreno de Deus é poupado. A Igreja Nossa Senhora de Fátima foi invadida três vezes no ano passado. O assédio da mendicância, cada vez mais agressivo, afastou alguns fiéis e turistas. A missa das 6h30 perdeu público e o grupo jovem que se reunia nas noites de domingo julgou mais prudente mudar o horário. “A Igreja está tão insegura quanto os cidadãos. O que eu posso fazer? A paróquia reza muito para que nada mais grave aconteça”, diz o padre Frei Júnio César. 

108 SUL 

Clube da vizinhança
(Foto: Michael Melo)

Pedintes ficam em volta do espaço de lazer para tirar proveito da entrada e saída dos sócios. O próprio presidente do clube já sofreu duas tentativas de assalto. Quando recorreu ao Posto Policial ao lado, o guarda o orientou a chamar a polícia, pois não podia deixar seu plantão. 

Escola classe
(Foto: Michael Melo)

A praça em frente às escolas virou ponto de encontro de usuários de drogas. O grupo pode ser encontrado de manhã cedo, horário de entrada dos alunos. Sempre que vê uma aglomeração estranha, o secretário da Escola Classe, Raimundo de Sá, aciona o Batalhão da PM. “No ano passado eles vieram umas oito vezes”, conta. 

107 SUL 

Batalhão desativado
(Foto: Michael Melo)

Ainda que o local abrigasse a companhia de motos do Batalhão de Trânsito, os moradores dizem sentir falta dos PMs. A simples presença deles já coibia alguns delitos. O aumento no número de assaltos coincide com a data de abandono do local. 

307 SUL 

Prefeito da quadra
(Foto: Michael Melo)

Iluminação adequada e policiamento são as principais reivindicações dos prefeitos da vizinhança. Eles gastam horas do dia enviando ofícios e fazendo denúncias à Polícia Militar, Polícia Civil, Sedest e Seops. “Os moradores daqui sabem direitinho quem são os traficantes, onde está a boca de fumo. Nós alimentamos os órgãos responsáveis com informações. Temos fotos e vídeos, mas não adianta”, diz Marcel Camargo (foto), responsável pela prefeitura da 307. Na 308, Edmilson Magalhães Filho discute um projeto de segurança privada dentro da quadra. “A ideia é colocar uma guarita na entrada, sem impedir o acesso livre, só para monitorar. Temos de nos adequar aos novos tempos”, diz.

Onde o crime não compensa

Pontos convergentes nas experiências de sucesso

No início dos anos 90, as cidades de Medellín e Bogotá, na Colômbia, eram consideradas as mais violentas do mundo. Dez anos depois, tornaram-se laboratórios da paz. Em 2001, a Restinga, bairro periclitante de Porto Alegre, conseguiu zerar a taxa de homicídios em apenas seis meses. Há quinze anos, Diadema, na Grande São Paulo, tinha índices de violência iguais aos de um país em guerra civil. Dois anos atrás, o município paulista registrou 37 assassinatos, um recorde positivo. Belo Horizonte, Recife e Vitória também implantaram programas de segurança que fizeram seus responsáveis estufar o peito ao exibir os resultados. As experiências bem-sucedidas ainda são frágeis ilhas de excelência, sem escala nacional. Contudo, todas têm elementos em comum. Nelas, a prevenção e a repressão ao crime são acompanhadas por projetos sociais. Só polícia não basta. Conhecidas como “segurança pública com cidadania”, as ações exitosas integraram escolas, médicos da família, conselho tutelar, defensoria e Ministério Público. As polícias Civil e Militar, conhecidas por suas desavenças, afinaram suas estratégias e passaram a compartilhar dados. Numa força-tarefa, com metas bem definidas, todos trabalham em rede para garantir o direito de ir e vir do cidadão. A guarda tem de ser trocada, valorizada, mais bem remunerada e qualificada para obter a confiança da população, que, por sua vez, deve cooperar. Nessa luta contra o crime, o Estado precisa oferecer alternativas interessantes aos jovens. Os casos bem-sucedidos contaram com a boa vontade de todos os envolvidos. Mas a boa vontade apenas não basta. Tem de meter a mão na massa.
A empresária Raphaela Alves: sua loja, na 308 Sul, foi invadida duas vezes no primeiro mês de funcionamento (Foto: Michael Melo)

Juliana Alves, gerente da Doctor Feet, na 309 Sul: par de roubos no curto histórico deste ano (Foto: Michael Melo)
Fonte: Blog Grande Angular / Revista Veja Brasília

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