quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Como o Black Bloc matou as manifestações


Por João Marcello Erthal

Bomba atinge a cabeça de cinegrafista da TV Bandeirantes que gravava cenas do protesto no Rio de Janeiro (Agência O Globo)

Com desrespeito às instituições, intolerância e práticas violentas, mascarados expulsaram o cidadão comum dos protestos. Agora, tentam justificar a morte de um cinegrafista citando “outras mortes da PM”. Agem, assim, como quem tolera a ação de justiceiros.

Os mascarados consideram que todo homem fardado deve levar bomba. Uma delas acertou Santiago Andrade. ...

Em um vídeo de apoio às manifestações, publicado em outubro do ano passado, a atriz Camila Pitanga lançava a pergunta: “Vai precisar ter morte? Porrada já está rolando”, alertava, seguida de uma sequência de depoimento de famosos. O testemunho de Camila, assim como todas as críticas “à violência” nas manifestações, tratava a truculência como uma exclusividade das forças policiais, e culpava “a mídia” por acobertar esses abusos. Brasil afora, houve e há excessos da PM em situações muito além dos protestos – e é “a mídia” quem os apresenta. A morte pela qual ansiavam os mascarados veio na última quinta-feira, e, mais uma vez, graças às câmeras de fotógrafos e cinegrafistas “da mídia”, soube-se que os assassinos eram mascarados – um desastre para quem torcia por um assassinato com assinatura da polícia.

A página do grupo Black Bloc no Facebook foi invadida por uma onda comentários chamando os mascarados de “assassinos”. Os administradores e apoiadores da “tática” rejeitam o rótulo, ignoram o fato de Andrade ter sido morto por dois dos seus e chamam os críticos de alienados. Dizem que são gente que “não quer mudar” e que não enxerga “a luta por mudança”. Na tarde desta terça-feira, Elisa Quadros, a agora famosa “Sininho”, foi hostilizada por passageiros de um ônibus. O motorista do coletivo recusou-se a parar para que a cineasta embarcasse.

Os radicais mascarados repetem, assim, a cegueira e o desprezo pela divergência de opiniões que levam à rua e às redes sociais desde junho. O Black Bloc apropriou-se de tal forma dos atos públicos que afastou das manifestações o cidadão comum, verdadeira força de um movimento popular. Atraiu uma antipatia que prejudica, hoje, as causas merecedoras da indignação dos cidadãos – entre elas, obviamente, a má qualidade dos transportes, da saúde, da polícia e da política. Do ‘milhão’, as passeatas recuaram para os milhares e, finalmente, as centenas, como nas últimas duas ocasiões.

Em junho, o país conheceu, quase simultaneamente aos black blocs, a ‘mídia ninja’, um grupo que, com uso de celulares, câmeras e computadores, transmitia em tempo real os protestos, os confrontos e o que quisessem – mas só o que quisessem. Ninja é sigla de “narrativas independentes, jornalismo e ação”. Ironicamente, não havia narrativa: o que se via era uma transmissão direcionada, com uma locução que, independentemente do que era mostrado, reafirmava bordões do radicalismo e culpava a polícia por todo tumulto. Não importa se um policial ardia nas chamas de um coquetel molotov. O culpado era um PM, um infiltrado.

Os black blocs receberam apoio de instituições. Na mais grotesca manifestação de apoio, o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio (Sepe), em meio a uma greve altamente contaminada por interesses políticos, adotou os mascarados como sua força de defesa "contra o abuso policial". O mesmo sindicato considerou "pacífica" uma manifestação que teve um baleado e 190 detidos. O deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), que tem em seu gabinete um assessor que comanda uma ONG que se dedica a prestar assistência jurídica a manifestantes detidos - e não importa o que tenham feito, de vandalismo a ataques ao patrimônio público e privado - está agora às voltas para explicar sua relação com os mascarados. Ele próprio já reconheceu: as manifestações estão "fora de controle".

Antes de Santiago Andrade, a tal narrativa – que, caso fosse realmente nova e interessante, poderia envolver a população – foi assassinada pelos black blocs. O roteiro dos protestos passou a ser o mesmo, sempre: um movimento chamado de “pacífico” que, em um determinado momento, abria fileiras para um bando de mascarados armados com bombas, coquetéis molotov, pedras e paus. Vinham, é óbvio, as bombas de efeito moral da PM, e tinha-se a imagem de guerrilha urbana. Em segundos, ninguém se lembrava mais da causa do protesto, e o que se tinha é a mesma “narrativa”: pancadaria, vidros quebrados, lojas saqueadas e clara intenção golpista.

“Não vai ter copa”, “Fora Cabral”, “PM assassina”, “Cadê Amarildo?”. Em cada uma das causas há, indiscutivelmente, razões reais para a indignação. Os projetos olímpicos são caros e precisam de fiscalização. O governador Sérgio Cabral bateu recorde de impopularidade e, no meio dos protestos, VEJA revelou seu hábito de se deslocar a lazer nas aeronaves do governo do Estado. A PM de fato precisa se aprimorar e expurgar os maus policiais e os vícios de corrupção. O pedreiro Amarildo de Souza foi vítima de uma série de práticas abjetas da PM, numa favela ocupada pela ‘nova polícia’ do secretário José Mariano Beltrame, na era das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Nenhum dos caminhos dos protestos, no entanto, escolheu uma rota que passe pelas instituições competentes, pelos instrumentos do jogo democrático. Os mascarados querem suspender a Copa ‘no grito’. Querem depor Sérgio Cabral, num golpe. Consideram que todo homem fardado deve levar bomba. Uma delas acertou Santiago Andrade.

É possível – e provável – que o morteiro não tivesse o cinegrafista como alvo. Mas outros cinegrafistas, fotógrafos e repórteres foram hostilizados em muitos momentos ao longo das manifestações. Equipes de VEJA foram xingadas e sofreram intimidação; e, na segunda-feira, pouco depois de ser diagnosticada a morte cerebral de Andrade, uma equipe da TV Globo foi hostilizada em uma manifestação no Centro.

Não há, em nenhuma página, discurso ou mesmo na “nota de condolências” da página “Black Bloc RJ”, uma referência ao que matou o cinegrafista. Para os mascarados, parece ter sido obra do destino. Eles – e, por incrível que pareça, também o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio – falam da tragédia como um erro “das empresas de comunicação”, ou culpam o Estado. Também rebatem a revolta de quem viu Andrade ser atingido pelo morteiro, indo ao chão desacordado, com uma lembrança de “tudo que a PM já fez”.

Nesta forma de justificar o injustificável está oculto mais um perigo do que pretendem os mascarados. Quando lembram “outras mortes” para atenuar o que fizeram com Santiago Andrade, os black blocs agem como quem tolerou a ação de justiceiros e a cena de um garoto de 15 anos amarrado pelo pescoço a um poste, com uma tranca de bicicleta – preso porque “é bandido”.

Fonte: Revista Veja 

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